

Política em crise e estilo em alta | Foto: reprodução
13 de outubro de 2025 – Paris tem dois palcos que nunca fecham: o de Matignon e o da Semana de Moda. No primeiro, Sébastien Lecornu se tornou o protagonista improvável de uma tragicomédia institucional. Renunciou e foi reconduzido dias depois, numa coreografia que expôs a fadiga do semipresidencialismo francês quando falta maioria estável. No comunicado da re-recondução, a promessa é “fazer o dever” e entregar o orçamento; na prática, um pedido desesperado para que os partidos encerrem o espetáculo ridículo da paralisia antes do prazo orçamentário.
A moldura é conhecida. Depois das legislativas antecipadas de 2024, a Assembleia ficou fraturada em três blocos inconciliáveis: centro, esquerda e direita radical. A consequência é um governo sem maioria, incapaz de aprovar um orçamento sem acionar gambitos procedimentais e sem pagar pedágios políticos que desmontam qualquer agenda coerente. Na semana em que Lecornu caiu e voltou, falou-se em “perda do senso de responsabilidade” dos líderes e no risco real de a França entrar em 2026 sem orçamento aprovado, num cenário de dívida e déficit em alta.
Ao mesmo tempo, literalmente no mesmo quarteirão cultural, a Semana de Moda de Paris seguia luminosa. Desfiles de estreia, reinvenções de casas históricas, um business as usual que, de tão bem azeitado, parece anticíclico: a política patina, o luxo desliza. A cobertura descreveu a temporada como inovadora e sensual; do outro lado, reportagens notaram o contraste. Enquanto o governo se desfazia em mais um episódio de instabilidade, as engrenagens do luxo continuavam a girar, com grifes oferecendo sua paz de seda. O paradoxo é tão francês que chega a ser didático.
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Convém evitar o clichê do “fim da democracia”. O que vemos é democracia funcionando no seu limite, aquilo que Robert Dahl chamou de poliarquia: muitos centros de poder competindo e se bloqueando, com legitimidades dispersas e vetos cruzados. É um regime que sobrevive ao próprio desequilíbrio, mas isso tem custo: tempo perdido, orçamentos atrasados, reformas amputadas. Dahl cunhou “poliarquia” para descrever arranjos de alta competição e participação, menos uma utopia do que uma engenharia de atritos.
No caso francês, soma-se a arquitetura semipresidencial, invenção teórica à la Maurice Duverger, que brilha na estabilidade e range na fragmentação. Presidente eleito diretamente, primeiro-ministro dependente de confiança parlamentar e um orçamento que não perdoa. Quando o eleitorado se parte em três, o “governo do meio”, qualquer que seja, vira ingovernabilidade administrada: negocia voto a voto enquanto a agenda derrete no calor do calendário.
É aqui que a coisa deixa de ser teatro. Há prazo legal para apresentar o projeto orçamentário, e cada dia perdido torna mais provável a entrada em 2026 sem lei aprovada, com impacto em juros, confiança e programas públicos. Lecornu tenta vender o possível, poupar alguns décimos de déficit, reabrir debates tóxicos como o da aposentadoria, mas esquerda e direita já acenam com moções de censura e recusas de confiança. A crise, em suma, é aritmética antes de ser ideológica.
Enquanto isso, o luxo dá sinais mistos: lucros comprimidos em semestres recentes, turbulência regulatória e, ainda assim, desfiles cheios, manchetes entusiasmadas, aplausos. O setor aprendeu a transformar volatilidade em narrativa: “renovação criativa”, “novas direções artísticas”, “artesãos do futuro”. E aprendeu também a vender estabilidade simbólica quando o resto treme. Paris parece dizer: pode faltar maioria, não faltará coleção.
Há, porém, um aprendizado incômodo e libertador para democracias que politizaram tudo, inclusive as identidades: a vida pode seguir mesmo quando a política não funciona. Isso não é cinismo; é um antídoto. Em regimes autoritários, ditatoriais ou totalitários, nada escapa à política; tudo deve caber no casaco sob a etiqueta do Partido, da Revolução ou do Chefe. A irrelevância, ou insignificância prática, da política em certos períodos é um bem público: protege arte, ciência, fé, comércio e afetos do apetite totalizante do poder.
Hannah Arendt explicou o impulso do totalitarismo de colonizar todas as esferas da vida. Quando “tudo é político”, a pólis devora o mundo. A democracia, ao contrário, respira quando admite zonas de indiferença: bairros onde a administração falha, mas a vida comum inventa soluções; nichos criativos que florescem apesar do Estado; empreendedores, escolas, cultos e coletivos que não precisam de decreto para existir.
Pierre Rosanvallon chamou isso de contrademocracia: uma democracia que não se resume ao governo e ao voto, mas se realiza também em vigilâncias, vetos e autonomias cotidianas. Em períodos de paralisia, a sociedade redescobre músculos próprios, e essa energia civil é tudo o que um projeto autoritário odeia. Não por acaso, todo tirano tenta insuflar a fantasia de que “sem mim, nada funciona”. A França, entre Matignon e a passarela, ensina o oposto: funciona, torta, anárquica, mas viva.
O outro lado do argumento é claro: quando toda a vida se organiza sob o casaco com o brand “Política”, não sobra passarela livre. A estética vira cartilha, a cartilha vira censura, a censura vira ortodoxia. Democracias maduras precisam saber quando despolitizar, não por indiferença moral, mas por prudência institucional. O luxo, o teatro, a gastronomia, o futebol, as romarias e as canções são também instituições de liberdade. Não precisam de moção de confiança.
O curioso, para manter o humor francês da análise, é que a França tem uma extrema esquerda que se intitula insubmissa. Fora do Élysée, insubmissa; dentro, tantas vezes, submissora: quer submeter toda a sociedade a uma única coleção, uma única passarela e, para quem gosta de música, uma única nota. A pluralidade que legitima a crítica fora do poder se converte, no poder, em projeto de padronização do mundo. É a velha tentação revolucionária de transformar estilo em Estado.
E, enquanto isso, os desfiles e festas privé vão ao som de muita música e champagne, com muito álcool, mas sem metanol. A ironia é pedagógica: a cidade celebra a vida precisamente porque ela não cabe na moldura da ocasião política.
A França, como de hábito, sobrevive e ainda dá aula de estilo. O risco é confundir resiliência com resignação. Dahl ajuda a entender o labirinto; Duverger, a planta do prédio. O trabalho de sair dele continua sendo da política, e essa, por ora, caminha como modelo em salto alto no paralelepípedo: avança, mas vacila.
Élcio Batista é Coordenador do Programa Cidade +2°C do Centro de Estudos das Cidades | Laboratório Arq.Futuro | Insper.
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