Entre 2011 e 2020, o Brasil registrou 24.909 casos de acidentes de trabalho e 466 mortes envolvendo menores de 18 anos de idade, com uma média de 2,5 mil acidentes e 47 mortes por ano, conforme destaca estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicado nesta sexta-feira (13), na Revista Brasileira de Saúde Ocupacional.
O que serviu de referência para a escrita do artigo foi a base de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), que registram acidentes de crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17 anos. De acordo com cálculos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), mais de 1,8 milhão de menores de idade com essa faixa etária (4,6%) eram vítimas de trabalho infantil em 2019.
A parcela indicada no artigo recém-publicado corresponde a 3% do total de acidentes graves de trabalho documentados pelo Sinan. O que se observa, em relação ao perfil das vítimas, é que a maioria é do gênero masculino (82%), tem 16 ou 17 anos (85%) e é branca (44%).
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Embora haja predominância de brancos em relação ao índice geral, quando o recorte é de riscos no contexto do trabalho infantil, a proporção de crianças e adolescentes negros, ou seja, pretos e pardos, é maior, de 56% contra 40% de brancos. Além disso, percebe-se que o setor de serviços tem sido o que mais agrava a situação de trabalho infantil no país, atualmente.
A origem, salienta o artigo acadêmico, é, principalmente, o emprego como entregador de delivery ou outros produtos, vendedor ambulante em centros urbanos, trabalhador doméstico ou de cuidador. Outro dado relevante, trazido pela pesquisa, é o de que segmentos como agropecuária, indústria extrativista e construção civil ocasionam mais mortes.
Na década sob análise, houve aumento de 3,8% no número de registros de acidentes com crianças de 5 a 13 anos, idade em que o trabalho é ilegal, segundo a legislação brasileira. As outras faixas de idade, de 14 a 15 anos e de 16 a 17 anos, apresentaram em torno de 50% de queda de registros no período analisado.
A autora principal do estudo, Élida Hennington, professora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fiocruz, afirma que, apesar de os números reais ficarem muito abaixo do que é registrado, são “aterradores”. “Imaginando que isso é apenas uma parte da realidade, isso tem um peso grande para esse problema. Acho que não existe uma solução mágica nem a curto prazo. Acho que deve haver um esforço dos governos federal, estadual e municipal e da sociedade, tem que ser um grupo articulado, envolvendo Ministério Público, conselhos tutelares, escolas, para a gente conseguir olhar para esses diagnósticos feitos e propor ações mais contundentes e que possam, de fato, impactar essa realidade”, argumenta.
“A gente tem de continuar essa luta especialmente para combater o trabalho infantil, não é nem para prevenir acidentes”, resume.
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A secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), Katerina Volcov, comenta que há, ainda hoje, no país, muito desconhecimento sobre o que configura trabalho infantil e que isso faz com que casos sejam reportados como negligência ou tenham outra caracterização oficialmente. Isso acaba gerando subnotificação nos índices.
Outro ponto para o qual chama a atenção é o fato de que muitos acidentes que crianças e adolescentes sofrem no ambiente doméstico, na condição de trabalhadores, permanecem invisíveis, sem que isso chegue até as autoridades. Algo que contribui para que isso fique longe dos olhos da maioria das pessoas é também a natureza da atividade, já que os trabalhadores domésticos são bastante esquecidos já naturalmente.
Para Katerina, esse tipo de exploração é um indicativo de que há um conjunto de elementos em desarmonia, quadro que exige o aprimoramento e a articulação de políticas públicas ao mesmo tempo, para que se solucione desde a pobreza e o atendimento de saúde até o sistema de educação e à organização de cooperativas. “O trabalho infantil é a ponta do iceberg da desigualdade social. Quando você o vê, é porque uma série de direitos não foram efetivados para aquela criança, para aquele adolescente e para aquela família”, sintetiza ela.
Resgatando um pouco do que já testemunhou a partir de suas andanças pelo país, como figura que contribui para o enfrentamento desse tipo de crime, a secretária do FNPETI pontua que a ideia que algumas famílias fazem do trabalho impacta diretamente os índices de violações de direitos de crianças e adolescentes.
Ela menciona que muitas pessoas consideram normal que menores de idade exerçam certas atividades, como acontece com a cultura extrativista no norte do país, a qual depende do manuseio de instrumentos pontiagudos, aos quais eles acabam tendo acesso. Ou seja, de certa forma, o trabalho infantil é aceito e mesmo incentivado, por vezes. “Teve um caso muito emblemático no Marajó, de um menino de 13, 14 anos, que trabalhava em uma serralheria e foi cortado ao meio. Morreu na hora”, conta Katerina.
Katerina acrescenta que diversos mitos em torno do trabalho complicam mais o combate ao trabalho infantil. Como exemplo, ela cita a noção que o brasileiro tem de se poder circular livremente pelas ruas. “A rua acaba sendo um sinônimo de vagabundagem. Isso tem resquícios na nossa história. Quando você vai ler sobre a malandragem, a capoeira, o samba, vai vendo que isso tem a ver com o período de escravidão, quando não se permitia que os ex-escravizados, que não eram assalariados ainda, permanecessem nas ruas. Tem esse constructo social que permanece. A nossa sociedade é imensamente racista, misógina, homofóbica e isso se reproduz no modo como as pessoas vão escolhendo suas profissões”, lembra ela.
Por Letycia Bond – Repórter da Agência Brasil – São Paulo / Edição: Aécio Amado
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