Na escola, uma das principais aulas de história do Brasil é que foi uma princesa que, em 1888, assinou a Lei Áurea e oficializou o fim à escravidão no país. O nome dela era comprido: Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bourbon-Duas Sicílias e Bragança. Ela tinha 41 anos na época e já vivia o seu terceiro e último período de regência (o que significa que era a governante, na prática, por conta do adoecimento do pai, o imperador Pedro II). Mas essa é apenas uma parte da história.
Cem anos após a morte de Isabel, que faleceu no dia 14 de novembro de 1921, na França, historiadores defendem que o legado precisa ser enxergado no seu tamanho devido. Para esses pesquisadores, as aulas e os livros de história precisam ampliar a compreensão do papel de uma mulher que foi além de assinar um documento.
Segundo esses estudiosos, para se fazer justiça à trajetória da princesa, é necessário entender percalços que enfrentou e as articulações que precisou organizar. Se por um lado, conhecia o repúdio de fazendeiros escravocratas e também o machismo estrutural e histórico, a “Redentora” (como ficou conhecida por causa da lei) conseguiu agir nos bastidores. Não foi simples. Mas ela escreveu ter ficado com o “coração aliviado” ao afastar o império do escravagismo.
“Foi com o coração mais alliviado que perto de uma hora da tarde partimos para o Rio a fim de eu assignar a grande lei, cuja maior gloria cabe a Papae que há tantos annos esforça-se para um tal fim. Eu também fiz alguma cousa e confesso que estou bem contente de também ter trabalhado para idéa tão humanitaria e grandiosa”, escreveu Isabel aos pais (mantida a grafia original).
Para investigar a fundo a trajetória da mulher governante que ficou conhecida por uma assinatura tão especial, a historiadora Maria de Fátima Moraes Argon estuda, há mais de 20 anos, as cartas trocadas entre a princesa e a família imperial. Já se debruçou em mais de mil correspondências, entre documentos do Museu Imperial ao arquivo particular da família.
Para a pesquisadora, há muito ainda o que se desvendar do percurso de “Dona Isabel”, como uma mulher que aproveitou oportunidades para se aproximar do que mais acreditava. Isabel foi equivocadamente reconhecida, sobretudo, como uma pessoa religiosa pouco afeita ao poder ou às responsabilidades que ocuparia. Na opinião dela, Isabel tinha sagacidade e soube reunir experiências para lidar com poderosos. “Eu percebi que os livros que eu conhecia traziam uma pessoa muito diferente daquela que eu lia nas cartas. Foi emergindo uma outra mulher, uma outra figura e aí eu fui me interessando. Nos últimos 20 anos, pelo menos, eu venho então me dedicando a descobrir (o que está omisso)”.
Entre os focos da investigação, por exemplo, estão a sensibilidade e as relações artísticas que a princesa, que tocava vários instrumentos, mantinha. Entre elas constam figuras como os compositores Carlos Gomes, que dedicou obras à princesa, como a ópera O Escravo, e Chiquinha Gonzaga, que fez o Hino à Redentora. “Eu já vi livros que tratavam da relação do Carlos Gomes com Dom Pedro II, como se a dona Isabel não tivesse existido”, lamenta a pesquisadora.
O historiador Bruno Antunes de Cerqueira, que é um dos fundadores e gestor do Instituto Cultural D. Isabel I, a Redentora, identifica também que a memória em relação à personagem ficou esgarçada.
“Por tudo que a gente lia, parecia que se tratava, de forma superficial, de uma religiosa de pouca inteligência. Comecei a pesquisar em obras como de Raquel de Queiroz, que exaltavam a princesa (pela sapiência e compromisso público)”. O pesquisador percebeu, então, que poderiam haver interdições machistas também em relação à documentação pública. “Há livros que não a reconhecem como alguém que agiu pela abolição”.
Os pesquisadores Bruno Cerqueira e Maria de Fátima Argon, inclusive, publicaram, em parceria, o livro Alegrias e tristezas: estudos sobre a autobiografia de D.Isabel do Brasil (com 888 páginas). Mesmo sendo a legítima herdeira do trono, Isabel era vista de forma desconfiada pelos políticos da época, em um sistema patriarcal e escravista. Na primeira regência dela, com a ausência do pai por viagem, em 1871, assinou a Lei do Ventre Livre. No segundo período de regência (1876/77), quando o pai também viajou, precisou lidar com período de seca histórica no Brasil.
“Estamos falando de uma época em que a mulher estava reservada lá para sua condição de vida doméstica. Isso já começa lá no Império mesmo. A classe política reconhecia a dona Isabel como a herdeira. Mas o fato deles serem por ela chefiados era, no mínimo, inquietante. Eles não conseguiam entender isso, em um momento em que a mulher não tinha direito ao voto ou possibilidade de exercer cargo público”, pontua a pesquisadora Maria de Fátima Argon.
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Outra biógrafa da princesa Isabel, a jornalista Regina Echeverria, no livro A história da Princesa Isabel: amor, liberdade e exílio, também destaca que houve um processo de desmerecimento dos feitos da regente, com argumentos de que seu saber estava limitado a questões religiosas. “Ela tinha opinião, batalhava pelo o que acreditava. Viveu um grande amor com o marido e foi mãe de três filhos. Teve partos complicados. Ela fez libertar os escravos da monarquia e conseguiu chegar aonde queria”, afirma.
Os indícios abolicionistas remexiam os arranjos políticos. Recebia ameaças de fazendeiros, que insuflavam quem pudessem contra a herdeira considerada atrevida. “Era uma mulher e ainda por cima que se mostrou publicamente abolicionista. Era um ultraje para eles e para os fazendeiros, que também ocupavam cargos políticos”, afirma Bruno Cerqueira. Ele contextualiza que, apesar do incômodo com o fato de ela ser mulher, monarquistas mais convictos passavam por cima disso por causa da família.
Aquele cenário apresentava-se sem volta. Dona Isabel herdaria o trono do pai e iria se tornar a primeira mulher da história a chegar ao poder no Brasil. Experiência ela já tinha, porque conhecia os políticos desde que era uma jovem de 25 anos e ocupou pelas primeira vez a regência do país (já que os irmãos homens haviam falecido). “Dona Isabel realmente não tinha ambição pelo poder. O fato de ela ver o próprio pai, nas diversas cartas ele enviava pra filha, tratar o trono como um martírio, e também a vontade de ser mãe e estar com o marido, não faziam com que ela sonhasse o tempo inteiro com o poder”, diz Maria de Fátima Argon.
No entanto, a pesquisadora contextualiza que a princesa era preparada para chegar ao trono e não se omitia. Em uma carta datada de 1865, o imperador escreve à filha: “Você sabe o quanto eu estudei nos últimos tempos? Eu estudei para você estudar”. Os professores de Isabel também haviam sido os educadores de Pedro, profissionais que eram os principais expoentes no país das várias disciplinas. “Era uma mulher preparada e que tinha a noção do desafio de pensar que se tratava de um país com maioria analfabeta e escravagista”, afirma a pesquisadora.
Para os estudiosos, não há dúvidas de que Isabel era uma abolicionista desde jovem, mas isso foi algo que só se revelou com o tempo. “As fontes primárias e secundárias narram que ela foi abolicionista. Ela era abolicionista, de modo privado, desde que ela era muito nova. Ela escancarou os pensamentos dela em 1888”, conta o professor Bruno Cerqueira. Ele defende que, desde pequena, ela pediu no aniversário para que escravos fossem libertados. “Mas ela fazia parte do reino e não tinha como ir para rua para panfletar”.
Foi então que Isabel percebeu que a havia um movimento da opinião pública brasileira de se tornar pró-abolição. “Antes, escondida, fazia de forma reservada. Ela protegeu, por exemplo, o quilombo do Leblon, quando o Barão de Cotegipe e o desembargador Coelho Bastos, chefe da polícia, iam massacrar as pessoas. Foi ela que não deixou que isso acontecesse em 1886”, diz o pesquisador. “A Lei Áurea não é uma coisa micro. Decretou a igualdade. Ela aproveitou o momento e foi audaciosa”, diz Bruno Cerqueira.
O 13 de maio de 1888 foi de festa no Brasil, conforme explicam os historiadores. Os jornais do dia seguinte trouxeram a novidade nas manchetes. O povo em Petrópolis foi homenageá-la e ela recebeu flores, na chuva, das pessoas. No ano seguinte à Abolição, a monarquia foi destituída, e a família imperial foi para o exílio. “As influências dela na França são pouco exploradas. Por isso, estamos desenvolvendo pesquisas sobre esse assunto para um novo livro. Há questões importantes sobre a dona Isabel que precisamos entender mais ”.
Para a biógrafa Regina Echeverria, Isabel sentiu muito ter ido embora do país e não autorizou ninguém a protestar por um retorno da família. Na França, conversava com amigos célebres brasileiros, como Alberto Santos Dumont.
Isabel morreu no exílio, aos 75 anos, após o agravamento de uma pneumonia. Os restos mortais da princesa e do marido, o Conde d´Eu (que faleceu um ano após a esposa), foram transportados de navio para o Rio de Janeiro, no ano de 1953, e ficaram na Catedral da capital. Dezoito anos depois, foram sepultados em um mausoléu da Catedral de São Pedro de Alcântara, na cidade de Petrópolis (RJ), onde já estavam os corpos dos pais da princesa, Pedro II e Teresa Cristina.
Por Luiz Claudio Ferreira – Repórter da Agência Brasil – Brasília
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