Em meio à pandemia do novo coronavírus, depois de passar um mês internado com covid-19 ao lado da esposa, o professor e roteirista Charles Ribeiro Pinheiro decidiu colocar em prática um projeto que há muito tempo tinha em mente: recontar a história do movimento cultural Padaria Espiritual, que agitou culturalmente a cidade de Fortaleza no fim do século XIX no formato de história em quadrinhos, que considera mais acessível para a população.
“Fui alfabetizado pelas histórias em quadrinhos. Cresci lendo quadrinhos. Como professor e pesquisador acadêmico de literatura cearense, resolvi aliar o meu lado pesquisador e roteirista de quadrinhos em um projeto que explorasse narrativas gráficas sobre a história do Ceará, dos movimentos literários e dos seus escritores. Assim, nasceu o projeto Padaria Espiritual em quadrinhos”, revela.
Charles Ribeiro é formado em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e, desde antes da graduação, era fascinado pela história, pela literatura, autores e movimentos literários do Ceará. “Participei de um grupo de pesquisa na UFC, sob orientação da Professora Odalice de Castro Silva, estudando a obra do escritor Rodolfo Teófilo. Fiz mestrado e doutorado sobre Rodolfo Teófilo, e para estudar esse autor, pesquisei a história do Ceará e seu contexto literário.
E assim, estudei muito sobre a Padaria Espiritual, pois Rodolfo Teófilo fez parte desta agremiação”, esclarece.
>>>>>SIGA O YOUTUBE DO PORTAL TERRA DA LUZ<<<<<
A Padaria Espiritual foi um movimento literário que se formou nas cadeiras do Café Java, quiosque estilo Art Nouveau que ficava na Praça do Ferreira, no centro de Fortaleza. Ali se concentravam jovens boêmios, artistas e literatos que debatiam as novidades da época. A capital cearense vivia uma riquíssima efervescência cultural e política. “Devido ao desejo dos jovens letrados e bacharéis de se modernizar e de se atualizar com as novidades intelectuais e artísticas, houve uma intensa e difícil procura por livros, que eram comprados, emprestados, lidos e discutidos nas ruas, praças, cafés, livrarias, gabinetes de leituras, clubes e agremiações literárias”, relata o pesquisador Charles Ribeiro.
O fundador e animador do movimento cultural foi Antonio Sales, um jovem poeta de 24 anos (autor do livro “Versos diversos”, 1890). “Ele foi instigado pelos gracejos de seus amigos Lopes Filho, Ulisses Bezerra, Sabino Batista, Álvaro Martins, Temístocles Machado, Tibúrcio de Freitas, nas festivas reuniões no Café Java, no fim de maio de 1892. Os jovens escritores queriam criar um grêmio literário para despertar o gosto pelas letras em Fortaleza”, conta. Charles acrescenta que Antônio Sales, no entanto, não queria criar uma instituição séria e formal, como tantas outras que existiam na época. “Ele concordaria em organizar o grupo ‘só se fosse uma cousa nova, original e mesmo um tanto escandalosa’, que sacudisse a cidade e ‘tivesse uma repercussão lá fora’. Na época de sua atuação, 1892-1898, a Padaria Espiritual teve repercussão nacional e internacional, sobretudo, em Portugal”, afirma Charles Ribeiro.
A Padaria Espiritual se notabilizou pela originalidade e pelo humor, pela difusão das estéticas literárias da época, pela divulgação das novidades culturais, científicas e políticas que ocorriam no Brasil e no estrangeiro, pelo lançamento e publicação de novos escritores. “Segundo o pesquisador Sânzio de Azevedo, um dos marcos da Padaria foi a de ser uma das divulgadoras da estética simbolista no Brasil. O livro de poemas “Phantos”, do ‘padeiro’ Lopes Filho, com prefácio de Antônio Sales, foi colocado à venda em 1893, em Fortaleza, um mês antes da publicação de “Broquéis de Cruz e Sousa”. Além da influência de poetas simbolistas franceses e portugueses, entre os ‘padeiros’ havia uma variedade de estilos literários como o parnasianismo, o romantismo, o realismo e naturalismo. Havia artistas como o músico Henrique Jorge e o ilustrador Luís Sá”.
Leia também | Jardim Botânico do Rio de Janeiro realiza a Semana do Bioma Pampa
O custo do projeto, que une as linguagens da literatura e das histórias em quadrinhos, é estimado em R$ 45 mil. Dinheiro que ele pretende arrecadar por meio de uma campanha de financiamento coletivo para custear as despesas de edição e publicação do livro em quadrinhos.
A Campanha Padaria Espiritual em Quadrinhos ficará em cartaz no site Catarse até o dia 27 de dezembro. A ideia é lançar o projeto, de forma independente, até julho do ano que vem. “Em 2022, a Padaria Espiritual completa 130 anos de fundação. É um excelente momento para celebrar este grêmio. A Padaria Espiritual foi um importante grêmio artístico-literário que precisa ser mais divulgado, porque atualmente, dentro e fora do Ceará, pelo público em geral, ainda é pouco conhecida. Um livro em quadrinhos sobre a Padaria Espiritual, além de atrativo produto cultural, serve de fomento para divulgação da história literária cearense e brasileira”, destaca.
Os apoiadores receberão exemplares físicos do livro em quadrinhos, que está disponível também em formato digital. “O objetivo é a publicação do livro físico, mas também do formato digital que possa ser viabilizado nas famosas plataformas de e-books atuais. Além do livro em quadrinhos, também desenvolvemos a republicação de livros cearenses raros, trabalhando primeiramente com “Violação” e futuramente com “Maria Rita” e “Meus Zoilos”, todos de Rodolfo Teófilo. Alguns livros serão adaptados para os quadrinhos, como “A normalista”, de Adolfo Caminha”, projeta o roteirista.
Charles também tem em mente construir um site com um mapa interativo que retrate a Fortaleza antiga, da época da Padaria Espiritual, destacando ruas, praças e prédios históricos importantes e significativos na época. “O objetivo é que o livro da Padaria Espiritual seja o primeiro de muitos que pretendemos abordar sobre a história e a literatura do Ceará. Unir a literatura, a história e os quadrinhos é um projeto que pretendo levar adiante com o nome ‘Fortaleza: narrativas gráficas’, cujo objetivo é pesquisar, escrever e produzir histórias em quadrinhos sobre a memória histórica, patrimonial, artística e literária de Fortaleza, capital do Ceará”.
A história da Padaria Espiritual será contada a partir da perspectiva de Francisco da Luz, que estampará a capa do livro. Nascido em 1881, na cidade de Acarape (atual Redenção), filho de ex-escravizados que atuaram ativamente na campanha abolicionista cearense, Francisco da Luz tem 11 anos durante a inauguração da Padaria Espiritual. Era vendedor de jornais na Praça do Ferreira e logo cativou a amizade dos literatos, sobretudo, de Antônio Sales.
A história da Padaria Espiritual será mostrada em paralelo ao amadurecimento de Francisco da Luz, da adolescência à vida adulta. Inspirado em Luís Gama e, com apoio de Antônio Sales, forma-se em Direito e se torna jornalista no Ceará e, depois, no Rio de Janeiro. Ele é o cronista que irá transportar os leitores até a Fortaleza antiga, espaço da vida artística e boêmia, mas também da luta pela publicação de livros e da divulgação da literatura numa terra de poucos leitores, tipografias e livrarias.
“História em quadrinhos é uma linguagem artística híbrida, resultado da junção de texto e imagens. Os quadrinhos trabalham com dois dos principais dispositivos de comunicação humana: palavras e imagens. Relativamente, é uma mídia mais barata e acessível. Os quadrinhos podem ser um ótimo atrativo para fomentar novos leitores, principalmente crianças, adolescentes e jovens. Por isso, os quadrinhos, devido ao seu potencial expressivo, garantem a participação ativa do leitor e são excelentes meios de divulgar a literatura e a arte cearense”, explica Charles Ribeiro.
As ilustrações serão feitas por Luis XIII, artista cearense com trabalhos nos Estados Unidos (EUA), Canadá e França e Talles Rodrigues, ilustrador e designer gráfico, autor de Cortabundas – O Maníaco de José Walter, Novos Sumérios e vencedor do prêmio HQMix 2021 pelo quadrinho Mayara & Annabelle – Hora Extra.
A campanha do Catarse, que também conta com a possibilidade de patrocínios de empresas, prevê recompensas de acordo com cada tipo de apoio, incluindo o livro Padaria Espiritual em quadrinhos.
“É um tipo de campanha tudo ou nada. Só conseguiremos publicar e enviar o livro aos apoiadores se a meta estipulada for atingida. Desenvolver a construção desse livro, só será possível se eu me dedicar exclusivamente, por isso a necessidade do financiamento. A luta tem sido grande, mas estou batalhando todos os dias. É difícil, mas não impossível”, ressalta o pesquisador Charles Ribeiro
Leia também | A urgência social na economia da cultura