A liberdade de expressão e de imprensa piora quanto mais nos distanciamos dos anos 80, 90, da era da redemocratização, seu auge. É uma perda que parte da sociedade parece ter escolhido, seletiva que se tornou para algo amplo e irrestrito. Sem direito de fazê-lo, faz. Sem direito ao retrocesso incompreensível, aceita o insensato.
Naquela época, o predecessor do cancelamento era chamado de patrulha ideológica, coisa muito da esquerda. Era impopular, era feio fazer, visto que a própria esquerda se beneficiara da anistia, como todos. Mas vou pegar um caso mais recente.
No começo deste século, o Brasil passou por um debate áspero e com visões diametralmente opostas. A discussão sobre transgênicos subiu todos os degraus do debate. De um lado, os contrários diziam que os transgênicos prejudicariam o meio ambiente, desregulariam o equilíbrio da natureza, que os alimentos geneticamente modificados causariam uma epidemia de cânceres e matariam as pessoas.
Entre os defensores, que teríamos sementes mais produtivas, mais resistentes diante de pragas e que garantiriam a segurança alimentar, do ponto de vista de saúde e da oferta de alimentos.
Impossível. Mesmo assim, foi absolutamente possível fazer o debate acontecer em qualidade e quantidade. Eu mesmo fiz inúmeros debates e entrevistas de alto nível, quando âncora, na CBN.
Os que viveram aquela época jamais poderão dizer que não foram suficientemente informados com o que era possível saber naquele momento. Ciência é a busca incessante da certeza, não a certeza. Descobertas acontecem e conceitos evoluem.
Embora houvesse um ou outro protesto um pouco mais radical, o debate aconteceu e ninguém foi cancelado.
Um caso mais recente, este triste, de perda da capacidade do debate nos trouxe para o obscurantismo que imaginávamos ter superado. E que começou com um lado dos debatedores e com parte da própria imprensa, até evoluir aos impedimentos e cancelamentos pelo Supremo Tribunal Federal.
O tratamento precoce para Covid-19 (lá vem o Facebook colocar uma mensagem de alerta), defendido por um grupo de cientistas e médicos e pesadamente criticado por outro grupo de médicos e cientistas não teve o mesmo privilégio de um debate sério, intelectualmente honesto e respeitoso entre os pares e com o público.
E tal como os transgênicos, ninguém sabia – ainda não sabemos – por inteiro a ação do vírus e o tamanho das consequências da pandemia.
O debate real e verdadeiro, justo e respeitoso, lá trás, esclareceu os produtos geneticamente modificados. O não debate de agora, nos fez ficar sem o avanço do conhecimento que a troca de ideias e posições nos permite.
Parte dos médicos, da imprensa, da classe política e até o Supremo (também as big techs) perseguiram e até criminalizaram o lado que defendia o tratamento com drogas conhecidas para algo que, ainda hoje, nem as vacinas – alvissareiras, frise-se – conseguem conter, dado que, é até compreensível, ainda se discuta o número de doses a tomar e qual a melhor tecnologia vacinal imunizante.
Foi um caso de patrulha elevada a potência 10 do cancelamento “hater“. Sem dó, sem piedade, sem inteligência.
Eu lhes pergunto: por que muita gente abriu mão do debate? Qual o objetivo disso? Qual o ganho social e humano dessa escolha macabra que nos tolheu a liberdade de expressão, algo duramente conquistado por quem nos antecedeu na Revolução Francesa, na Segunda Guerra, na queda do muro de Berlin, na luta contra a ditadura no Brasil e no mundo, só pra citar alguns eventos históricos e heróicos de gente que sangrou e morreu para que tivéssemos a liberdade que temos hoje?
Sei que alguns vão ler este meu artigo e dirão: “de novo essa coisa de tratamento precoce”, “de vacina, Covid”, etc. O Facebook vai, certamente, me “ligar”.
À parte a inabilidade de algoritmos que calculam mas não pensam e a lacuna pessoal em conhecimento de língua portuguesa destes leitores, que os impede fazer uma boa interpretação de texto, eu tenho 49 anos, incomodado desde que me entendo por gente, politicamente participante desde a sétima série, eleitor desde os 16 anos, vivi a Constituinte e a Constituição de 88, li e reli seu longo texto e sou jornalista há quase 30 anos, e cresci sob a liberdade de expressão, que não abro mão.
Ah, e apertei a mão do doutor Ulisses, num comício para deputado Constituinte em Piracicaba, aos 14 anos, que pedi ao meu pai para me levar. E o doutor Ulisses conversou comigo, um menino, por imensos 10 minutos, com um monte de políticos querendo falar com ele.
Eu sei quem sou, o que fizeram os que me antecederam e que país herdei. E não abro mão de nada. Assim como eu, há muitos.
Adalberto Piotto é jornalista formado pela Universidade Metodista de Piracicaba com especialização em economia pela Fipe-USP. Apresentador do ‘Pensando o Brasil’, programa fruto da parceria com o CIEE. É diretor e produtor do filme-documentário “Orgulho de Ser Brasileiro” (2013), de sua autoria, que disseca o estilo de ser do brasileiro com todas as suas nuances e oscilações de sentimento enquanto cidadão. De 1999 a 2011, foi âncora da CBN em São Paulo, onde começou como repórter. Em 2014, de julho até o início de dezembro, foi âncora do ‘Jornal da Manhã’, noticiário transmitido pela Jovem Pan. É palestrante nas áreas de economia, realidade social brasileira e jornalismo.
*Texto originalmente publicado no Facebook /Portal Publique-se
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