Venceram Lula. Não estranhe a conjugação verbal. É que Lula não é mais um indivíduo que no domingo (30/10) foi eleito como o trigésimo-nono presidente brasileiro. Ele representa um movimento, amplo, suprapartidário, e que compreende sobretudo os grupos sociais esquecidos ou desprezados pelo governo Bolsonaro. Lula venceu entre as mulheres que sofrem com a violência de gênero, os jovens que sofrem em dobro com o desemprego, os pobres e negros que são diariamente massacrados pela carestia da cesta básica, pelo arrocho salarial, pelo racismo.
Não seria exagero dizer que ontem testemunhamos a vitória da democracia, dos seus valores e instituições, sobre um Estado autoritário, que já se desenhava num eventual novo governo Bolsonaro. Em todos os países cujos líderes eleitos se tornaram autocratas, a dinâmica foi semelhante às proposições do agora ex-presidente: aparelhamento dos tribunais superiores, perseguição a opositores, uso das forças armadas ou de milícias para garantir a extensão do seu
poder. Vimos isso acontecer na Hungria, Rússia, Cuba e…Venezuela. Sim, estivemos mais próximos de virarmos uma Venezuela sob um novo governo Bolsonaro do que jamais estaremos sob o terceiro governo Lula. É uma prova inquestionável de que o povo brasileiro aspira a um ambiente democrático, com paz e estabilidade.
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E afinal, o que explica a derrota de Bolsonaro? Há muitas razões que podemos apontar aqui. A primeira delas é que Jair nunca saiu do personagem que vestiu desde antes do pleito de 2018, a fim de canalizar o antipetismo difundido à exaustão por grandes veículos de mídia, juntamente com a criminalização da política, o que levou o país a um golpe parlamentar disfarçado de impeachment, a um governo ilegítimo marcado por “reformas” que aprofundaram a
precarização do trabalho e, finalmente, à eleição de um outsider que se vendia como “antissistema”, não obstante tivesse passado quase três décadas exercendo cargos eletivos dentro desse mesmo sistema. Enquanto ele, por um lado, destilava ódio e desprezo contra mulheres, afrodescendentes, homossexuais, por outro mantinha relações promíscuas com o centrão o qual ele tanto criticava. Isso para não falar das diversas denúncias de corrupção
envolvendo a si e aos seus filhos parlamentares. Mas a condução desastrosa da pandemia da covid-19 e a degradação das condições de vida dos mais pobres foram decisivos para o resultado ao qual assistimos ontem, inédito na nossa história republicana recente.
Não foi uma vitória consagradora para Lula. Sim, ele novamente teve uma das maiores votações da história das democracias ocidentais, mas o panorama que saiu das urnas foi a de um país dividido. Com um Congresso e Senado esmagadoramente direitista, não será tão simples para o presidente eleito levar adiante tudo o que ele propôs como plataforma de governo. Não obstante, Lula é reconhecidamente um hábil negociador e já tratou de se cercar de políticos com trânsito entre colegas de centro-direita. A escolha de Geraldo Alckmin para vice, por exemplo, sinaliza uma função política para o ex-adversário, que pode mesmo comandar um ministério, tal como ocorreu com José de Alencar, ex-vice de Lula que assumiu o ministério da Defesa entre 2004 e 2006. Haverá uma oposição violenta? Decerto? Liderada por Bolsonaro? Não sabemos. Contudo, é importante frisar: Bolsonaro pode ter sido derrotado nas urnas, porém o bolsonarismo permanecerá como uma força política e ideológica relevante nos próximos anos.
Os tempos mudaram e é importante levar isso em conta na avaliação do novo governo Lula. Não estamos mais em 2002. As condições políticas e econômicas são bastante diferentes. Não esperemos uma repetição tout court de um governo que foi eleito há 20 anos. Esse é o espaço de uma geração que hoje desconhece o que foram as gestões do líder petista e que têm outras demandas e valores. Em 2002, poucos poderiam imaginar o poder político da internet ou ousariam discutir seriamente questões como a transexualidade. Se Bolsonaro soube captar o Zeitgeist do Brasil de 2013 para frente, Lula percebeu rápido que o Brasil saudoso da ditadura representado pelo seu rival era velho demais para resistir à força do novo, que, como diria Belchior, sempre vem. Lula fará o que for possível a partir de 2023, com as forças políticas e sociais de que dispõe. Todavia, a certeza de que os mais pobres serão privilegiados no seu mandato já nos dá grande alento, posto que os mais eles foram os mais castigados nos últimos quatro anos.
Gabriel Petter é mestre e doutorando em Educação (UFPR), professor e analista político.
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