O múnus público deriva do poder conferido aos que o exercem, sendo outorgado diretamente pelo povo, mediante o voto, ou por aqueles nomeados pelos eleitos para os vários cargos nas estruturas dos governos, nos três níveis. Os encargos oficiais, também, são exercíveis por aqueles que ingressam no serviço público mediante concursos para as várias carreiras de Estado. É de se lamentar, porém, o fato de que tais atribuições transitam, há já algum tempo, por profundas deformações em seu significado, no decorrer da história.
Sociedades pretensamente modernas e democráticas não admitem orçamentos paralelos e secretos, como pretendeu implantar o atual governo, com a conivência da Câmara dos Deputados, legislando em causa própria, mediante a autoconcessão de bilhões de recursos públicos por via de espúrias emendas do relator, a fim de aprovar a PEC dos Precatórios.
A cultura do “não” representa o não ético, não republicano e não cumprimento do dever exigido pela função, internalizada e adotada por grande parcela dos agentes públicos, que se vivencia, seja pela desídia, ou ainda pela incapacidade de compreender a natureza e a responsabilidade dos cargos que exercem. Consoante se observa, também, no comportamento incivilizado do ‘presiMente’ da República, foi corroído o conceito de ‘servidor público’, na perspectiva de servir à coletividade, para o estabelecimento do bem comum!
Na realidade em curso – e tal não é supérfluo repetir – o que predomina no setor público em geral (com as exceções confirmatórias da regra), especialmente em a toda estrutura do governo federal, é a prática do não à ciência, bem assim ao direito à vida, efetivada quando o governo disse não à aquisição de vacinas, e até para o fornecimento de oxigênio à população vitimada pela covid-19.
A arrogância negacionista, experimentada nesses anos de escuridão, agravou a patologia do “não fazer e do não atender”, que se aditam à anomalia do mau proceder, tão ao gosto de parte substantiva dos agentes públicos, em detrimento da saudável e cidadã ação de servir.
São as distorções decorrentes do exercício contínuo da prática do “não” observáveis nas mais comezinhas ações, desde os que faltam ao trabalho, no âmbito dos serviços essenciais, como o professor que não dá aulas, o profissional da área da saúde ausente do plantão, o policial que se deixa corromper, e debocha das mulheres ou das pessoas trans, quando buscam proteção contra a violência da qual são vítimas, no cotidiano, e tantos e tantos…
A cultura do “não podemos atender hoje”, “volte na próxima semana”, ou “só temos vaga para daqui a três meses”, é bastante comum no serviço público, até para uma simples marcação de consulta ou de um exame, mostrando-se ainda mais cruel pelas consequências que acarreta, pois é passível de subtrair a vida daquele que teve o seu atendimento postergado.
Em algum momento, o leitor já deve ter vivenciado essa realidade. Tal prática do cotidiano, ora observada no setor público, é um traço da falta de compromisso por parte de um significativo contingente de servidores públicos, seja nas grandes ou nas pequenas cidades – onde os serviços são ainda mais precários. Essa distorção, além dos imensuráveis prejuízos materiais que causam à população, no limite, acentuamos que é o escancaramento da mais larga porta para a corrupção.
Em simples português: criam-se dificuldades para vender facilidades. Os exemplos banais aqui referidos são emblemáticos da grande corrupção internalizada que viceja no Brasil, dando origem a “mensalões”, “rachadinhas” e “pixulecos”, revelando o atraso histórico em que ainda nos encontramos, compondo uma sociedade vitimada por um Estado organizado sob a égide do patrimonialismo, bem como das relações incestuosas entre o público e o privado, que remonta às capitanias hereditárias, com todo o respeito à memória dos capitães-mores.
E imperioso se faz afirmar que o Poder Judiciário, ao qual se impõe o dever constitucional de coibir essas anomalias desde as origens, também falhou, pois, quando não se omitiu, foi conivente com todas as práticas atentatórias à democracia e ao republicanismo. Fez o mesmo que os demais poderes e seus agentes. Também disse não ao papel restaurador que lhe cabia, deixando de punir os crimes que foram se acumulando, e deformando a elite política e econômica, assim como a sociedade como um todo.
Não tivesse o Judiciário dito “não”, quando deixou de imprimir o esperado efeito pedagógico em suas decisões, teria impedido que outros crimes houvessem sido praticados, cumulativamente, conforme sucede agora. Mais do que admitir, é preciso que se debite ao Judiciário grande parcela da responsabilidade pela corrupção endêmica em nossa sociedade, quando não coibiu essas práticas, apenando, consoante a letra legal, os malfeitores, seja por omissão ou por conivência, no curso da história.
Impende, ainda, se assinalar o fato insofismável de que a própria “Vi judicantes” foi contaminada pela corrupção, em todas as suas instâncias. A imprensa, pretensamente “combativa” e atenta aos vícios dos poderes da República (Executivo e Legislativo, notadamente do segundo), historicamente, se omitiu ou foi leniente em relação aos malfeitos de alguns integrantes do Judiciário, deixando-os livres para a prática dos desvios de conduta, dentro e fora do poder que integram.
Essa omissão ou leniência da imprensa, ante o Poder Judiciário, foi e continua sendo tão deletéria à democracia quanto os desvios cometidos pelos demais agentes públicos. Nesse sentido, a mídia também disse não à sociedade brasileira e deve fazer seu “mea culpa”.
É amplamente sensível o fato de que a negação de direitos aos jurisdicionados no Brasil é histórica, sem que tenhamos observado, ainda, mesmo nos tempos atuais, qualquer melhoria substantiva por parte dos que dirigem a estrutura do Poder Judiciário para mudar essa vergonhosa realidade. Esse talvez seja o mais grave de todos os “nãos” já referidos. Como, entretanto, diz o dito popular, “antes tarde do que nunca!” Ainda é tempo.
Arnaldo Santos é jornalista, sociólogo e doutor em Ciências Políticas. Comentários e críticas para: arnaldosantos13@live.com
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