

Especialista alerta para a necessidade de soterramento da fiação como política pública de resiliência climática no Brasil | Foto: Élcio Batista
14 de setembro de 2025 – Sábado de manhã.
Acordo com sons múltiplos, ruídos indistinguíveis. A moto-serra atua e evoca símbolos: árvores, corte, derrubada, natureza, mudança do clima, fios, cidade. Talvez, biodiversidade.
Saio e vejo a rua interrompida. Homens mestiços, em silêncio coordenado, trabalham. Uma árvore imensa, com galhos enormes, se espraia para além do terreno do prédio onde está enraizada: toca fios, calçadas e prédios vizinhos. É como se dissesse: “meus galhos não conhecem propriedade”. Nesse gesto, afirma um princípio da natureza: sua lógica é a expansão, não a contenção.
A cidade, porém, responde com a serra. Os homens de capacete, corda e motosserra não apenas podam: delimitam. Eles marcam a fronteira de até onde a natureza pode avançar sem comprometer a engrenagem urbana. O corte é um gesto de poder: conter o excesso, proteger os fios, evitar o risco.
Mas é impossível não ver a cena como um paradoxo. Galhos e fios disputam o mesmo território aéreo. Ambos se entrelaçam, se enroscam, se confundem. Ambos são sistemas vitais: os fios, condutores invisíveis de energia e comunicação; os galhos, condutores de seiva, sombra e vida. Ambos sustentam a cidade. Ambos a tornam habitável.
E, no entanto, tratamos a convivência entre eles como conflito inevitável. A cada poda, a cada derrubada, a cidade resolve o impasse pela supressão de um dos lados. O fio prevalece sobre o galho. A eletricidade, sobre a fotossíntese. O curto prazo, sobre a resiliência.
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Muitas cidades já compreenderam que o enterramento da fiação não é luxo, mas política pública de resiliência. Paris, por exemplo, integra o soterramento da rede elétrica ao seu plano de expansão de corredores verdes e “ilhas de frescor”, reduzindo em até 3°C as temperaturas locais em ondas de calor. Singapura avançou nesse mesmo sentido ao projetar a cidade como um “jardim no qual se constrói”, liberando o espaço aéreo para copas que se entrelaçam acima das avenidas.
Na América Latina, Medellín transformou a expansão do verde em eixo central de adaptação climática: seus Corredores Verdes não só reduziram temperaturas médias em até 2°C, mas também ampliaram a biodiversidade urbana. Tudo isso só foi possível porque a cidade passou a tratar árvores como infraestrutura, não como ornamento.
No Brasil, ainda são raras as experiências de enterramento sistemático da fiação. Quando ocorrem, são restritas a centros históricos ou a avenidas de prestígio, reforçando desigualdades urbanas. Mas a crise climática exige escala e urgência. Cada quilômetro de fio enterrado representa não apenas menos risco de queda em tempestades, mas também mais liberdade para árvores crescerem, sombrearem ruas e reduzirem o calor que ameaça a vida urbana.
O argumento é simples: não há adaptação climática sem árvores, e não haverá árvores sem liberar o céu urbano dos fios. A política de soterramento deve ser tratada como investimento em saúde pública, mobilidade, energia e segurança climática.
Volto à cena daquela manhã de sábado: homens mestiços, motosserras, cordas, galhos suspensos entrelaçados com fios. A cada corte, uma negociação entre vida e técnica. A cada queda, uma lembrança de que cidade e natureza não são polos opostos, mas partes de um mesmo organismo.
A árvore não pediu licença para projetar-se sobre a rua. O fio não pediu permissão para atravessar sua copa. Ambos seguem suas lógicas, ambos sustentam a vida urbana. O conflito nasce da recusa em reconhecer que precisamos de ambos.
Talvez o futuro da cidade esteja justamente em superar essa falsa separação. Não mais “cidade contra natureza”, mas “cidade como natureza”. Não mais fios contra galhos, mas fios enterrados para que galhos se expandam.
Enterrar os fios é mais do que uma obra de engenharia: é um gesto simbólico. É escolher a sombra sobre o asfalto quente. É devolver às árvores o direito de existir em sua plenitude. É reconhecer que a cidade só será habitável se aprender a crescer junto com a natureza, e não contra ela.
No fim, não se trata de vencer a luta entre galho e fio. Trata-se de inventar uma nova coreografia, na qual a técnica liberta e a árvore protege. Uma dança em que a cidade respira e a natureza floresce.
Élcio Batista é coordenador do Programa Cidade +2°C do Centro de Estudos das Cidades | Laboratório Arq.Futuro | Insper.
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