A Justiça do Ceará determinou o afastamento das funções de policiais civis que estariam envolvidos numa organização criminosa acusada da prática de crimes de tortura, extorsão, tráfico de drogas, peculato, prevaricação, denunciação caluniosa, falsidade ideológica, falso testemunho, abuso de autoridade, fraude processual, entre outros crimes que teriam sido cometidos entre os anos de 2016 e 2018, em Fortaleza e Região Metropolitana.
A decisão judicial (abaixo) atinge, em alguma medida, todos os 32 acusados de integrar a organização criminosa, composta por 22 inspetores, um escrivão, duas delegadas e um ex-inspetor da Polícia Civil do Ceará (atualmente delegado da Polícia Civil do Piauí), além de seis civis (informantes e traficantes). A maioria dos denunciados atuava junto à Divisão de Combate de Tráfico de Drogas (DCTD), da Polícia Civil do Estado.
De acordo com o despacho dos magistrados da Vara de Delitos de Organizações Criminosas (VDOC), foram deferidos os pedidos de afastamento da função pública de todos os policiais acusados, além de quebra de sigilo dos aparelhos de telefone de onde foram feitas as conversas interceptadas durante a investigação, e ainda quebra de sigilo bancário, busca e apreensão nas residências e locais de trabalho de parte dos acusados. Também foi determinado o uso de tornozeleira eletrônica.
A decisão da Vara de Delitos de Organizações Criminosas foi tomada no último dia 17 de setembro e seguiu em sigilo judicial até a manhã desta segunda-feira (27/09). A denúncia do MPCE foi oferecida no dia 18 de agosto de 2021. Os detalhes de toda a investigação foram revelados em entrevista coletiva, nesta segunda-feira (27/9), concedida pelo procurador-geral de Justiça, Manuel Pinheiro, e pelos seis membros do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (GAECO), que assinam a denúncia contra o grupo investigado. Os nomes dos investigados não foram apresentados.
As investigações sobre a atuação da organização criminosa envolvendo policiais civis do Ceará ficaram a cargo do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (GAECO) do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), em parceria com a Coordenadoria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará.
Os depoimentos e provas levantadas comprovaram um esquema instalado na Divisão de Combate ao Tráfico de Drogas – DCTD (DENARC), formada por delegadas e inspetores da Polícia Civil e informantes, que tinha o objetivo de obter vantagens (econômica ou prestígio profissional) para os integrantes. Por trás do suposto comprometimento dos policiais, exaltada em boa parte das prisões protagonizadas por agentes da DCTD, havia, na verdade, uma série de ilegalidades e abusos de poder, com a prática reiterada de crimes graves, que foram cometidos durante três anos na DCTD, segundo as investigações.
As apurações resultaram na denúncia do GAECO/MPCE à Justiça do Estado do Ceará, que traz o relato detalhado de 26 fatos criminosos envolvendo a organização, ocorridos entre os anos de 2016 e 2018. Em uma das situações descritas, um abordado foi torturado no interior de um veículo, na presença de uma criança, para que desse informações sobre a localização de drogas. Em um dos áudios (abaixo), gravados por um agente que estava no veículo e participava das agressões, é possível ouvir o choro da criança e a voz trêmula do abordado.
Os crimes praticados pelos policiais civis do Ceará estavam sendo investigados pela Polícia Federal, que chegou a realizar a primeira fase da operação “Vereda Sombria”, em dezembro de 2017, e, posteriormente, já em 2018, no oferecimento de denúncia criminal pelo Ministério Público Federal, dando origem a uma Ação Penal na Justiça Federal.
No curso do processo federal, parte do material foi enviado para aos órgãos de investigação do Estado do Ceará, além de informações coletadas na Operação Vereda Sombria que não tinham sido objeto de denúncia pelo MPF. O GAECO/MPCE, então, instaurou um inquérito para a devida apuração. A análise dos telefones celulares apreendidos comprovou a existência da organização criminosa existente na DCTD, inclusive com atuação maior do que se pensava inicialmente, além de revelar novos e importantes membros até então desconhecidos.
Além de obter vantagens ilícitas, financeira ou profissional, a organização criminosa se valia de apoio político e de uso de mobilização da categoria profissional como forma de obscurecerem a fiscalização de órgãos responsáveis pelo controle da atividade policial, como o Ministério Público e a Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD).
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Em grande parte das ações, a execução dos crimes se dava da seguinte forma: através de “informações” privilegiadas repassadas pelos informantes, ou mesmo obtidas de operações em curso na Divisão, o grupo abordava vítimas específicas que pudessem ser “trabalhadas” para o alcance tanto de apreensão de grande quantidade de drogas, quanto de dinheiro para os que integravam a linha de frente das abordagens, tudo com a conivência e proteção das delegadas. O termo “trabalhadas”, no caso, se traduzia em submeter os abordados a tortura física e/ou psicológica, inclusive com o uso constante de filmes plásticos para sufocamento.
Algumas vezes, o próprio abordado ganhava a confiança do grupo e tornava-se parceiro ou informante, inclusive recebendo dinheiro ilícito e drogas desviadas das apreensões como pagamento pelas “informações” repassadas.
Se, por um lado, as grandes apreensões traziam notoriedade e destaque à Divisão e, consequentemente, às delegadas que a comandavam, por outro, os bastidores dessas operações possibilitavam a obtenção de grandes vantagens patrimoniais para os envolvidos nas abordagens, tanto os inspetores quanto os informantes, que ficavam, muitas vezes com drogas, armas e objetos pessoais dos traficantes, que neste momento se tornavam “vítimas” da organização criminosa.
Em um casos narrados, os policiais teriam negociado a liberdade de uma menor em troca de drogas. O inspetor-chefe da Divisão informa claramente à delegada que está querendo “negociar droga pela liberdade dela” (menor). A delegada responde: “Vc tá comandando aí”, dando o aval para que o policial desse seguimento ao ato criminoso. Para o MP, ficou claro que a delegada sabia que uma adolescente estava sofrendo um sequestro e que a liberdade dela dependia de que o restante dos traficantes entregasse mais drogas aos policiais da DCTD (áudio abaixo), liderados pelo inspetor-chefe. Na mesma situação, os policiais também teriam recebido dinheiro para liberar a adolescente.
O segundo escalão da organização era formado por outro inspetor e por outra delegada. O referido inspetor era o conselheiro e homem de confiança da delegada apontada como a líder da organização. Mesmo à distância, ele direcionava as ações dos colegas em campo, induzindo-os à prática de diversos crimes, incluindo tortura. Ele também se ocupava, junto aos demais agentes públicos, em difamar e distribuir fotos de servidores da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD), para que todos pudessem, de alguma forma, identificar e desviar-se de possíveis investigações operadas pelos policiais envolvidos nos crimes (áudio abaixo).
Já segunda delegada em questão, enquanto amiga pessoal e braço direito da primeira delegada envolvida, cooperava diretamente nos desmandos criminosos do grupo, separando e direcionando equipes específicas ao local, aceitando e encorajando as práticas de tortura e crimes correlatos, além de tomar à frente na proteção dos membros da organização criminosa, caso a situação fugisse ao controle em algum momento.
Os demais policiais civis denunciados ora participavam diretamente das ações criminosas, com a prática de torturas, extorsão, tráfico de drogas, abuso de autoridade e peculato, como também intermediavam negociatas com alguns informantes, buscando situações propícias ao cometimento de delitos que resultassem no alcance dos objetivos da organização criminosa.
Havia ainda o núcleo de informantes da organização criminosa, que repassavam informações aos policiais acerca de traficantes rivais que pudessem render, ao mesmo tempo, importantes apreensões à delegacia e altos ganhos financeiros aos envolvidos. As investigações indicam que os próprios informantes negociavam diretamente com os traficantes e os atraíam para as abordagens criminosas. Ao final de cada etapa, os informantes eram remunerados com drogas ou dinheiro, dependendo do apurado da ação. Entre os crimes praticados pelos informantes é possível destacar tortura, usurpação de função pública, posse/porte ilegal de arma de fogo e tráfico de drogas.
Na entrevista coletiva desta segunda-feira (27/9), o Ministério Público também disponibilizou a transcrição de conversas telefônicas entre os integrantes da organização criminosa, que foram interceptadas com autorização da Justiça (abaixo).
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